quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Fragmento I


O autor, aos 04 anos 

Cheguei aos cinquenta, 
vivi muitas vidas.
Visito o coreto da praça
 e rebobino os traçados que me fizeram.
São de carne crua as marcas cravadas nas trilhas sinuosas
dos muitos ais de que me faço.

Pego com as mãos molhadas de memórias
as carências e encantos da infância-severina.
Mãe nordestina, rasgando brasis em paus-de-arara.
Pai, matuto mineiro, inteligência forjada nas dores,
 calejado de estradas.

Saboreei fomes degustadas à força
e a indignação vomitando sobre-mesas.
Espantou-me a miséria sorvida aos goles.
Encantou-me um vir-a-ser cravejado de lutas,
a gabiroba, as flores do campo,
a goiaba do mato e as primeiras letras.
Foram poucos os “troca-trocas”,
muitos os desejos que brincaram reprimidos em mim.

Pari trocados arrancados da venda do esterco,
da lenha despida de gravetos,
da verdura, do ferro-velho,
dos pés-de-moleque, doces e picolés.

Deixou-me a infância a marca
indelével da luta cotidiana pelo pão e seus saberes,
a vontade aguerrida de não ser um fracasso,
de lutar pelo humano,
ser um eterno menino a perguntar os porquês,
embalado em seu sonho de gente.

Moisés Augusto Gonçalves, in Fragmentos impertinentes