segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Fragmento XXXVII

Pés - Magritte

Piso novamente esta terra,
descalço de pés e alegrias.
Vem de longe o sabor,
tantas vezes requentado do estar juntos.
Temperado com vinagre e mel de abelha-rainha.
Servido com ervilhas.

Sinto o odor apimentado das injustiças.
Meus mirantes projetam olhos de lince.
Vejo além das cordilheiras.
Escalo meus Andes e Everestes,
sem vertigens.
Navego tempestades agarrado nas águas,
âncoras onduladas.

São gorjetas os dias que me restam.
Cheguei aos cinquenta,
vivi muitas vidas,
singrei os meus mares.
Rompi algemas,
derrubei senzalas
e o fascínio do poder.

Na andropausa da vida,
o calor brota de dentro.
Coisa dos “enta”.
Não me vendi por trinta moedas.
Ainda sou húmus. Fecundo mentes e corações.

Deixo rastros,
marcas inscritas nas paredes de pedras.
Em tom vermelho.
Agora sou uma epígrafe
no epílogo da vida,
post scriptum de múltiplas façanhas.
Incompleto e inconcluso,
tropecei muitas vezes.
E eis-me de pé, alerta,
 bradando impetuosamente:
Outra vez! Intensamente!!!

Moisés Augusto Gonçalves, in Fragmentos impertinentes